Fome de certeza. É isso que muitos de nós temos ao vagar por este vasto mundo.
Como resolver o problema da falta de certeza?
Há que se tomar uma decisão: quem é mais enganador? Os sentidos ou a razão?
Historicamente esta forma de pensar está associada ao Ceticismo, e um bom exemplo é o pensamento de um dos primeiros filósofos céticos, posterior a Pirro, que é Clitômaco de Cartago (Asdrúbal):
Esses dois Céticos se opunham à crença em divinação, mágica, e Astrologia, que estava se espalhando cada vez mais. Eles também desenvolveram uma doutrina construtiva, de acordo com graus de probabilidade; embora nunca possamos justicar a certeza, algumas coisas têm mais chance de serem verdadeiras que outras. A probabilidade deveria ser nosso guia na prática, pois é racional agir na mais provável dentre hipóteses possíveis. Esta visão é aquela com a qual a maioria dos filósofos modernos concordaria.” (Russell, Bertrand. A History of Western Philosophy.)
Decidir acreditar em graus de probabilidade em vez de se render a afirmações absolutas não é algo novo na Filosofia e na Ciência. Nas palavras de Bertrand Russell (A History of Western Philosophy):
“A autoridade científica, que é reconhecida pela maioria dos filósofos da época moderna, é uma coisa muito diferente da autoridade da Igreja, pois é intelectual e não governamental. Nenhuma punição incide sobre aqueles que a rejeitam; nenhum argumento prudente influencia aqueles que a aceitam. Prevalece apenas por seu apelo intrínseco à razão. (…) Há ainda outra diferença entre a autoridade científica e a autoridade eclesiástica, esta declara que suas afirmações são absolutamente certas e eternamente inalteráveis: as afirmações da ciência são feitas por tentativa, em uma base de probabilidade, e são consideradas como passíveis de modificação. Isto produz um temperamento bem diferente daquele do dogmático medieval”.
NO EMPIRISMO:
“A Razão, como Locke usa o termo, consiste em duas partes: primeira, um inquérito sobre que coisas conhecemos com certeza; segunda, uma investigação de proposições que aceitam-se sabiamente na prática, embora tenham apenas probabilidade e não certeza a seu favor. ‘Os alicerces da probabilidade’, diz Locke, ‘são dois: conformidade com nossa própria experiência, ou o testemunho da experiência de outro.'”
“Hume não quer dizer com ‘probabilidade’ o tipo de conhecimento contido na teoria matemática da probabilidade, como o de que a chance de atirar dois dados e obter duplo 6 é uma em 36. Este conhecimento não é provável em nenhum sentido especial; tem tanta certeza quanto o conhecimento pode ter. O que preocupa Hume é o conhecimento incerto, tal como o que é obtido de dados empíricos por inferências que não são demonstrativas. Isso inclui todo o nosso conhecimento a respeito do futuro, e a respeito de partes não observadas do passado e do presente. De fato, inclui tudo exceto, por um lado, observação direta, e, por outro, a lógica e a matemática.” (Russell menciona também que essa noção de probabilidade leva Hume a um pensamento cético.)
NO ESTOICISMO (que é uma escola filosófica originada no período helenístico, assim como o Ceticismo):
“Um filosofo estóico, Sphaerus, um discípulo imediato de Zenão, foi convidado uma vez para uma ceia pelo Rei Ptolomeu, que, tendo ouvido a respeito dessa doutrina, ofereceu a ele uma romã feita de cera. O filósofo tentou comê-la, e dele riu-se o Rei. O filósofo respondeu que não sentia certeza de que era uma romã de verdade, mas tinha pensado que seria improvável que qualquer coisa impalatável fosse servida na mesa real. Nesta resposta apelou a uma distinção estóica entre as coisas que podem ser conhecidas com certeza com base na percepção, e as coisas que, com a mesma base, são apenas prováveis. No todo, essa doutrina era sã e científica.”
Na Ciência, há rigor quanto à mensurabilidade de objetos de estudo e reprodutibilidade de resultados. Entretanto, a Intuição Probabilística é usada na manufatura de hipóteses e de conclusões a serem extrapoladas a partir de um dado experimento modesto.
Há também métodos como o da Parcimônia, usado na Filogenética para perceber que histórico evolutivo de dadas espécies biológicas é mais provável de acordo com a navalha de Ockham (Occam).
Pode-se concluir do pensamento de Karl Popper que existem muitas hipóteses científicas possíveis de serem concebidas e passíveis de passar pelo crivo das evidências. O heliocentrismo que chegou a Newton, por exemplo, teve origens obscuras em pensamentos quase místicos de antigos como Aristarco de Samos (c. 310 a.C. ? – 230 a. C.?), que tinham em suas épocas motivos não muito melhores que os motivos para acreditar no geocentrismo.
Como sabemos que uma dada hipótese é ridícula demais para que gastemos nosso tempo pesquisando a respeito dela? Pela probabilidade intuitiva.
E como poderíamos descartar uma concepção irrefutável como a do Gênio Maligno, ou de um idealismo similar (como o que é exibido nos filmes Matrix)?
Não podemos absolutamente, entretanto podemos tentar aplicar a intuição probabilística a esses casos, ou simplesmente avaliar se resolvem os problemas que se propõem a resolver.
Resolver problemas é funcionar. E a Ciência é um conhecimento funcional. A tal ponto que muitas vezes suas teorias se sobrepõem ao conhecimento empírico imediato, e são tão críveis quanto este.
Se há a Verdade, não vejo por que outras atividades cognitivas não-racionais estariam mais próximas dela do que a razão.
Se há a Verdade no mundo sensível, não vejo maneira melhor para atingi-la do que o empirismo.
Se a Ciência está vulnerável para ser concebida como maquinação do Gênio Maligno, sim, está. Mas Popper tem toda a razão quanto a isso não ser tão importante quanto os famintos pela Verdade pensam que é.
Funcionar é maravilhoso por si só. Se não compreendo todas as línguas para conhecer toda a literatura produzida, posso fazer a amostragem de ler apenas o que foi feito nas línguas que domino, o que inclui traduções.
Se não posso sair de casa para correr e fortalecer meu corpo, correr em círculos dentro de casa é melhor que se deixar consumir pelo ócio.
Então, se não há Verdade ou Certeza, é suficiente que eu tenha um conhecimento funcional.
É difícil que fundamentos últimos permaneçam de pé quando até mesmo a Lógica é questionada e classificada como uma contingência (como faz Wittgenstein em suas últimas obras).
Se não há fundamentos universais em conformidade com a Verdade ou a Certeza (se ela “é”), é suficiente que os fundamentos sejam construídos sobre as nossas ilusões e possamos regrá-las mais ainda.
Se não há alicerce para o edifício do conhecimento, que ele seja então uma nave flutuando sobre o caos.